Algumas impressões iniciais sobre o mercado de criptoarte (por Fabriano Rocha)
No que se refere a aspectos de compra e venda de arte, o mercado de criptoarte não é muito diferente do mercado de arte tradicional.
À primeira vista, a principal diferença está relacionada com o fato de que, no mercado de criptoarte, as obras são preferencialmente digitais, e os meios de pagamentos são, exclusivamente, moedas digitais.
Entretanto, observadores chamam atenção para um pano de fundo tecnológico, a partir do qual se viabiliza a existência de alguns projetos mais amplos e ambiciosos, envolvendo a construção de comunidades virtuais, reunindo, em primeiro lugar, artistas e apreciadores de arte e, a seguir, colecionadores e compradores.
Ao menos em tese, tais comunidades virtuais poderiam se relacionar com comunidades, tanto virtuais quanto analógicas, de cunho social e econômico mais amplo. Outra vez, ao menos em tese, comunidades virtuais poderiam se manter livres da ingerência de governos que cobram impostos e de entidades financeiras tradicionais, como bancos, por exemplo, que cobram juros e comissões, entre outros custos para intermediação de transações financeiras.
No caso do mercado de criptoarte, a não-ingerência estatal e institucional favoreceria trocas diretas entre artistas e compradores. Além disso, comunidades virtuais poderiam, mais adiante, favorecer encontros e trocas presenciais, havendo interesse entre as partes.
Voltando ao tema das similaridades entre o mercado de obras de arte digitais e a compra e venda de mercadorias em geral, é a possibilidade de se criar "escassez" artificialmente (no sentido de que, quanto menor a quantidade de certo produto no mercado, mais caro vai custar - ou mais valioso será, dependendo do enfoque).
Assinar uma obra material é a forma tradicional de se criar escassez, onde a assinatura é a "certificação" de que a obra assinada foi produzida especificamente por uma pessoa determinada e que é uma obra única, (ou uma cópia dentre uma série limitada de cópias).
No caso de arte digital, é a criptografia associada à obra no ato da venda o que cria a "escassez digital". Essa criptografia equivaleria à assinatura do artista: cópias digitais podem existir, mas apenas uma pessoa possui o certificado de que comprou a obra de quem a criou. Ou seja, além de ser um certificado de autenticidade (ou de exclusividade da posse), a criptografia é um "recibo", um "contrato de compra e venda".
Aqueles que defendem o "valor de escassez criado pela criptografia", argumentam que "reproduzir e multiplicar uma obra digital é muito fácil, e muitas pessoas podem conseguir uma cópia, mas apenas o comprador tem o 'comprovante de propriedade'". (No jargão anglo-saxônico, esse comprovante se chama "token", uma palavra que tem múltiplos significados, entre os quais o de "símbolo", que se aplica muito bem à realidade simbólica da posse de uma obra de arte digital, que tem conteúdo criptografado associado.)
Em resumo, o "valor monetário" da obra, seu valor de mercado, não está mais vinculado à materialidade ou à durabilidade do objeto em si, o valor está:
a) no "glamur social da compra" (valor de ostentação),
b) somado ao "valor da reputação da(o) artista nas redes sociais e nos meios de comunicação, em geral",
c) somado ao "valor de durabilidade digital do certificado criptografado da posse" - que, falando objetivamente, é uma convenção social com significado apenas dentro de um nicho social específico, assim como, em um universo social mais amplo, se convencionou que pedaços de papel impressos a cores na casa da moeda são chamados de "dinheiro".
(A título de esclarecimento, vale dizer que os tais "contratos de compra e venda criptografados, vinculados às obras digitais" não se tornam visíveis toda vez que alguém visualiza a obra em algum computador, televisão, celular ou tablet. Nem precisam estar necessariamente "escondidos" nas informações codificadas que se transformam em imagem quando essas informações codificadas são convertidas em imagem na tela de algum dispositivo. Na verdade, esses contratos criptografados estão registrados entre centenas de milhares de informações geradas a partir de qualquer troca feita com determinada moeda digital. Essas informações são consideradas, tecnicamente, "incorrompíveis", e não estão concentradas em um único lugar, mas, sim, distribuídas e hospedadas em inúmeros computadores independentes. Isso é o que se chama de "block chain" - um conjunto de informações criptografadas, ordenadas em uma "corrente" temporal, cuja proteção está garantida por sua descentralização.)
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Que tipo de obra pode ser vendida como criptoarte?
A princípio, qualquer coisa que possa ser produzida digitalmente ou que possa ser digitalizada, está apta a ser transformada em "criptoarte", mediante a vinculação a um contrato de compra e venda criptografado: fotografias, filmes, pinturas, desenhos, animações, memes, clipes de música, imagens criadas por "inteligência artificial", etc.
A possibilidade de "qualquer coisa" ser "considerada arte" decorre de um amplo e popular desconhecimento acerca de história da arte, de filosofia da arte, de teoria estética, entre outras outras questões que em contextos especializados são decisivas. Com isso quero dizer que, provavelmente, muita coisa que hoje está sendo comercializada como arte, no futuro deixará de ser vista como tal, ou serão ampliados os critérios pelos quais "algumas coisas" são classificadas como arte.
Enfim, essas chamadas "criptoartes" são expostas em sítios (sites) especializados e criados exclusivamente para expor e vender criptoarte, além de, é claro, atrair artistas e compradores, adaptando o conceito de "galeria" para o ambiente digital da internete. Os sítios funcionam por meio de programação algorítmica, o que, neste caso, significa que artistas e compradores podem, supostamente, transacionar entre si, sem intermediação de outros seres humanos.
Esses "espaços virtuais de compra e venda de obras de arte digital" não têm, portanto, existência física, existem apenas na internete. Divulgação massiva em redes sociais é, para esses sítios, a mais importante forma de criar uma "reputação", construir "prestígio" e atrair compradores.
Para um sítio construir reputação e prestígio, o primeiro passo é garantir confiabilidade em transações feitas com moeda digital. Entre outros tantos "certificados" de confiabilidade e prestígio de um sítio podemos listar os atributos de:
a) haver (o sítio/galeria) sido criado por alguém muito "popular" nas redes sociais, e/ou por alguém que possui um "histórico de popularidade", e/ou por alguém que tenha reputação de programador ou comerciante confiável,
b) haver recebido, em seu processo de desenvolvimento e/ou consolidação, investimentos significativos de empresas do ramo tecnológico e/ou financeiro.
Além da capacidade de produzir de peças digitais, que mais se exige dos artistas para entrarem nesse mercado? Ou, quais são as barreiras para os novos entrantes?
Para começar, precisa expor suas obras em algum dos sítios que já atuam no mercado, tendo esses sítios prestígio ou não. (Eventualmente, os artistas podem construir seus próprios sítios de compra e venda, mas, nesse caso, terão que assumir os custos de programação e de execução de estratégias para atrair compradores - assim como acontece em qualquer mercado tradicional.)
Para expor uma obra em algum dos sítios já atuantes no mercado, o artista precisa obrigatoriamente:
1. possuir uma carteira digital (uma espécie de banco virtual que trabalha com moedas digitais tipo bitcoin, eth, etc.), a partir da qual o artista possa transferir moedas para o sítio (à guisa de taxa de inscrição - fee* - e impulsionamento - gas**), e para onde o sítio possa transferir moedas digitais, quando alguma obra for vendida.
2. ler uma série de instruções (não muito complexas, mas, normalmente, em inglês).
3. preencher alguns formulários no sítio, se identificando, vinculando sua carteira digital ao sítio, etc.
Feita a inscrição no sítio, o artista já pode começar a "publicar" suas obras para serem vendidas. Como já se disse, a princípio, tudo que puder ser digitalizado ou produzido digitalmente, pode ser vendido como "criptoarte".
* No momento do envio da obra para ser posta à venda, o sítio exige o pagamento adiantado de uma comissão (fee), que seria uma espécie de retribuição pelos serviços da "galeria".
** Para "melhorar" o posicionamento de sua obra em um sítio onde milhares de "artistas" expõem suas obras, pode-se enviar mais moedas digitais como "investimento" (gas).
Os valores de "fee" e de "gas" variam de sítio para sítio, conforme o prestígio de cada um nas redes sociais. Sítios que estão buscando criar reputação e adquirir prestígio podem, por algum tempo, não exigir esse adiantamento, ou exigi-los mais reduzidos em relação aos exigidos pela concorrência. Alguns sítios oferecem a possibilidade de o artista pagar essa comissão para expor um conjunto (ou coleção) de obras, daí se podem publicar várias obras por um único valor. É obrigatório, portanto, o artista possuir uma carteira digital ativa e com alguma quantidade de moeda digital, pois essa comissão precisa ser paga com moeda digital, via transferência.
Depois dessa etapa, o artista escolhe entre, pelo menos, duas modalidades de venda de cada obra:
1. venda por "leilão": nessa modalidade, o valor da obra fica em aberto e os compradores vão fazendo ofertas que ficam visíveis para todos. Esse leilão virtual não tem dia nem hora para acabar, pode se estender indefinidamente. O fim do leilão acontece quando o artista se dá por satisfeito com o maior valor oferecido. Nessa modalidade, o artista pode definir previamente um valor que, quando for alcançado, encerra o leilão e a obra será vendida automaticamente, ou pode deixar o valor máximo em aberto e realizar a venda quando e por quanto quiser.
2. venda por valor definido: nessa modalidade, a venda não é feita para quem dá o maior lance, mas para quem paga o valor que o artista estipulou.
Tecnicamente, seria uma espécie de negociação sem intermediário, ou mediada apenas por algorítmos, o que, na prática, não corresponde exatamente aos fatos.
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E quanto às questões históricas, filosóficas e estéticas?
Trataremos desses aspectos num próximo texto.